Violência Obstétrica
Os relatos das violências sofridas dentro da maternidade ganham cada vez mais destaque
Brasília, 3 de maio de 2019. O Ministério da Saúde enviou um despacho recomendando o desuso do termo "violência obstétrica", com a justificativa de que "tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério".
Não é raro se deparar com relatos de mulheres que sofreram além das dores do parto quando se navega pelas redes sociais. A internet aproximou realidades antes distantes e não imaginadas, e uma delas, a que acontece dentro das maternidades, tem preocupado cada vez mais. Não só pela violência, mas pela falta de dados dos órgãos públicos, que não deixa clara a dimensão do problema.
Não há estudos feitos especificamente com o intuito de investigar agressões em maternidades, mas podemos perceber a gravidade dos casos em outros que esbarram no tema. Em 2010, o SESC e a Fundação Perseu Abramo realizou a pesquisa "Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado". Foram 2.365 entrevistadas em todos os estados do país. Um dos resultados revela que 25% dessas mulheres sofreu algum tipo de violência na hora de parir, ou seja, uma a cada quatro.
Outro estudo ajuda a perceber que esse tipo de violência não só é frequente e ocorre em grande número, como se tornou rotina nos atendimentos médicos na hora do parto: em 2014, a Fundação Oswaldo Cruz coordenou a pesquisa "Nascer no Brasil", que conversou com mais de 23 mil mulheres em todo o País. Os resultados: 91,7% ficaram em posição de litotomia (deitadas de barriga para cima, o que não facilita a saída do bebê); 36,1% sofreram a manobra de Kristeller (pressão na barriga para que o bebê saia mais rápido, pode quebrar a clavícula da criança e é contraindicada pelo Ministério da Saúde e pela OMS); e 53,5% passaram pela episiotomia, o temido corte entre a vagina e o ânus. Não há comprovação científica de que esse corte seja necessário ou benéfico para o parto, além de abrir margens para complicações como inflamações, por ser um lugar de difícil cicatrização, e outro tipo de violência: o "ponto do marido", onde o obstetra dá pontos a mais no corte feito, com a intenção de deixar a vagina mais apertada após o parto, com a intenção de aumentar o prazer sexual do parceiro.
Há a problemática da violência obstétrica ser relativizada tanto pelos profissionais de saúde, quanto pelas próprias mães. Dentre as histórias que ouvimos diariamente, são comuns frases como: "evita de gritar, porque se gritar as enfermeiras judiam", ouvir dos médicos "você é parideira, ano que vem está aqui de novo", e até mesmo "na hora de fazer não gritou". Nem só de violência física é feita a agressão nas maternidades. Por falta de acesso à informação, as denúncias são baixas no 180, a Central de Atendimento à Mulher. Em 2017, foram registrados apenas 74 casos.
Mas já que faltam estudos, sobram relatos. Basta entrar em um dos milhares de grupos voltados para mulheres no Facebook que, ao menos uma vez por dia, você se depara com a história de uma mãe que passou por situações semelhantes a tantas outras. Contaremos as histórias de três aqui.
Bárbara Inácio
Bárbara engravidou aos 20 anos. Antes de saber que esperava pelo pequeno Arthur, com um mês e meio de gravidez, ela caiu de uma escada, precisando ser afastada do trabalho por sequelas na lombar e no cóccix. Acabou voltando para a casa dos pais quando soube que estava em gestação, onde foi acolhida e bem cuidada, já que sua mãe, Sônia, é enfermeira. Ela não tinha plano de saúde, então todas suas consultas durante a gravidez foram pelo SUS, no hospital São Francisco, em Jacareí, interior de São Paulo. A gravidez era de risco não só pelo problema na lombar, mas por Bárbara também sofrer com um quadro de asma.
Foram vários os médicos por quais ela passou durante a gravidez, mas o Dr. Marco Aurélio Barbieri ficou marcado em sua vida, e não do modo que mulheres grávidas esperam. Toda semana, Bárbara precisava ir ao hospital tomar analgésicos na veia por conta das dores que sentia pela queda. Isso já era rotina, no entanto, o Dr. Marco insistiu que o quadro se tratava de uma infecção de urina, e se recusou a medicá-la para dor enquanto o resultado dos exames para a infecção não saíssem. Foram mais de quatro horas de espera, até que as gestantes que estavam no hospital começaram a chamar outros médicos e enfermeiras para que pudessem socorrer Bárbara, que estava chorando por conta das dores.
Foi por essa situação que Bárbara e sua mãe fizeram o primeiro boletim de ocorrência contra Marco Aurélio Barbieri. A partir daí, ela passou a evitar ao máximo consultas com ele, indo em outros hospitais e até mesmo deixando de passar no médico quando era ele que estava em plantão. Com 38 semanas, ela já estava com dois dedos de dilatação, e estava sendo orientada por outra médica a fazer exercícios físicos para estimular o parto. Ela precisava voltar ao hospital todos os dias para fazer o exame de toque e a amniocentese, que é a coleta do líquido amniótico.
Em uma das noites, quem atendia era o Dr. Marco Aurélio. A vontade de Bárbara era ir embora, mas sua mãe insistiu para que ela passasse, já que estava perto do pequeno Arthur nascer. Quando entrou na consulta para fazer o exame de toque, ela conta que Marco Aurélio não usou luvas, nem tirou o anel que estava usando. Sua mãe questionou se ele não faria a coleta de líquido amniótico, o que bastou para que o médico começasse a gritar com ela, a acusando de dizer que ele não sabia fazer o próprio trabalho. Nervosa, Bárbara saiu da sala e estava indo embora para casa. Nesse momento, Marco Aurélio ameaçou sua mãe, dizendo que ela perderia o bebê, e Sônia teria seu COREM de enfermeira caçado. Por isso, Bárbara ficou.
Alguns minutos depois, elas ficaram sabendo que foi feita a ordem de internação de parto, sendo que, nas palavras de Bárbara, "não estava na hora de eu parir. Fui levada para a internação, nervosa, e a justificativa do médico foi de que o Arthur estava sob estresse na minha barriga, de que eu poderia perder ele em casa". De fato, os batimentos cardíacos do bebê chegavam a 200 por minuto, o que serviu como prova para que o segundo boletim de ocorrência feito contra Marco Aurélio não desse em nada.
Por ter sido internada, Bárbara começou a trabalhar o corpo para o processo de parto, o que causou um edema em seu útero, resultado da força feita antes da hora. "Meu parto todo foi induzido, e eu estava trabalhando para ele não ser, pois eu queria um parto normal, um parto humanizado. Me deram soro na veia e estouraram a minha bolsa". Por conta do edema, o útero de Bárbara inchou, fazendo necessária a episiotomia. Ela diz que foi consultada em relação ao corte, e a obstetra que fez o procedimento foi atenciosa, mas nada como ela queria. Foram 38 horas de trabalho de parto, e em nenhum momento a equipe do hospital deixou o Dr. Marco Aurélio chegar perto dela e de seu filho.
Logo após dar à luz, sua mãe entrou com o segundo boletim de ocorrência contra Marco Aurélio. Bárbara não se recorda com precisão, mas foi no primeiro ou segundo dia de puerpério que a equipe de medicina do hospital foi procurar por ela, o que, em suas palavras, foi extremamente invasivo. "Foi super prejudicial para a minha saúde, pois eu não estava só no meu puerpério, mas nos primeiros dias. O chefe do hospital veio pedir meu relato, e ele podia esperar algum acompanhante meu estar lá. Ele mandou me chamarem no meu quarto e falou pra outra pessoa ficar com o meu filho pra eu ir lá e fazer o relato, sobre uma coisa que eu tinha sofrido".
Arthur nasceu saudável, não sofreu nenhuma sequela. Bárbara perdeu muito sangue, chegando a quase precisar de uma transfusão. Ela diz que nunca explicaram o que realmente aconteceu para que ela sangrasse tanto, e por tanto tempo. Ficou com manchas no rosto por duas semanas, decorrentes das dores fortes e gritos que deu durante o trabalho de parto. Acabou se recuperando bem. O pai de Arthur não mantém contato, mas seus avós pagam a pensão. O que ficou disso tudo, foi a experiência, que não deveria ter sido assim. "Desde criança meu sonho foi ser mãe. Eu sempre quis ser mãe, de verdade. Então vários eventos transformaram minha gravidez em um pesadelo".
Ellen Cristine
Ellen é mãe de três: Alice, de 8 anos, Arthur, de 4 anos, e o caçula Dante, de 2 anos. É radialista de formação, mas cuidando dos três, acha inviável seu retorno ao mercado de trabalho. Teve a Alice com 22 anos, em uma época confusa: estava no terceiro ano da faculdade, em um relacionamento que ainda não era estável, longe da mãe e sem condições financeiras ideais. Mas tudo se ajeitou, e a gravidez correu sem maiores preocupações.
Foi na hora do parto que Ellen vivenciou a violência obstétrica. Quando chegou ao hospital, foi muito bem atendida pelo obstetra de plantão e pelas enfermeiras. No entanto, quando ela chegou aos dez dedos de dilatação, o médico já era outro: Dr. Edmur de Moura Silva, protagonista de um dos casos mais chocantes de violência obstétrica. Em 2015, ele realizou um parto de risco em uma mulher grávida de seis meses, onde o feto teve a cabeça arrancada. A família o acusou de brutalidade, pois o bebê não estava encaixado na posição correta e foi puxado com força pelos pés, de modo que o corpo saiu, mas a cabeça, não. A criança ainda foi enterrada pelo hospital sem a autorização dos pais. Ele chegou a ser preso, mas foi solto logo em seguida e continua atendendo no mesmo hospital.
Ellen deu à luz a Alice antes desse caso, em 2011. Ao chegar à dilatação total, foi levada para a sala de parto, onde foi colocada junto com outra gestante que também estava parindo. Ellen conta que o Dr. Edmur não falava nem com ela e nem com o seu marido, era como se nenhum dos dois existisse. Ele foi atender a outra moça primeiro, e a deixou esperando. A enfermeira foi aplicar soro com hormônios, com a justificativa de que tudo seria mais rápido e ela sofreria menos. A contra-gosto, ela aceitou, e imediatamente as dores se tornaram insuportáveis.
Ellen teve que esperar um tempo que, para ela, parecia interminável. A enfermeira ainda recomendou que ela não fizesse força, para que Alice não nascesse sem o médico. Em determinado momento, Ellen e seu marido perceberam que o médico e a enfermeira estavam do lado de fora conversando e assinando papéis de final de plantão, então xx foi chamá-los, pois sua mulher estava com muitas dores e não aguentava mais. Eles ainda a fizeram levantar o corpo para arrumar o colchão, que tinha sido colocado errado.
Quando finalmente chegou a hora, o Dr. Edmur reclamava com frequência que Ellen não estava fazendo força suficiente. Que era fraca, e que aquilo estava demorando, e por isso fez a episiotomia. Não suficiente, pediu para a enfermeira fazer pressão sobre a barriga, a manobra de Kristeller, prontamente rejeitada por Ellen, pois seu sobrinho havia tido a clavícula quebrada ao nascer por conta desse procedimento. Por insistência da enfermeira, ela cedeu. "Eu acabei deixando e ainda assim o médico não para de dizer que eu era fraca, e que a enfermeira não estava colocando a força necessária".
Alice nasceu, parecia saudável e tudo estava bem. No entanto, no dia seguinte, Ellen notou que sua filha não mexia o braço direito. Passaram na fisioterapeuta, que identificou lesão na clavícula. Enfaixaram o braço de Alice e pediram para que retornassem em um mês. Ao voltarem, foi constatado que não só a clavícula foi lesionada, mas o plexo branquial também. Ela precisava entrar em tratamento fisioterápico imediatamente, ou perderia por completo os movimentos do braço direito.
Hoje, ela é uma criança grande, saudável, inteligente e ativa, afirma a orgulhosa mãe. Tornou-se canhota, e a rotação do braço direito é um pouco prejudicada. Por um tempo, Ellen se culpou, achando que se tivesse conseguido parir mais rápido, nada teria acontecido com sua filha. Mas agora sua visão é outra: "a violência com a mulher em todas as esferas já é algo orgânico da sociedade. A violência obstétrica só é mais um braço do machismo que coloca a mulher como culpada e merecedora de desprezo".
Por fim, conclui: "acho importante que as gestantes tenham mais informação do que eu tinha e evitem casos como o meu, eu não sabia na época, mas hoje eu sei que a protagonista no parto é a mulher e ela que deve escolher a posição e como deve ocorrer".
Márcia Carvalho
Márcia é o perfeito exemplo das violências sutis. Teve a primeira filha aos 17 anos, e a segunda, aos 36. Em ambos, queria parto normal. No primeiro, marcaram inexplicavelmente sua cesárea, afirmando que sua filha já estava pronta para nascer. No segundo, não conseguiu a dilatação necessária, tendo que recorrer à intervenção cirúrgica.
Quando a caçula Clarisse estava para nascer, ela e seu marido pagaram pela disponibilidade médica do obstetra no dia do parto o valor de R$ 2.500. Era o médico que vinha a acompanhando durante a gravidez, por isso acharam melhor que fosse ele a fazer o parto. Márcia deu entrada no hospital por volta das 22 horas, e foi atendida rispidamente pela obstetra de plantão. Quando seu médico chegou, fez alguns exames para verificar os batimentos cardíacos de Clarisse e foi embora, a deixando sozinha, com dor e sem nenhum monitoramento até às 3 da manhã.
"Hoje eu sei que eu precisava ter dito esse monitoramento, pros batimentos dela, pra ver se ela não tava em sofrimento. Chegou em um ponto que eu não aguentava mais de dor e pedi pra enfermeira chamar meu médico, e ele foi muito seco. Não sei se era por ser de madrugada, mas eu estava pagando por aquele atendimento".
No dia seguinte ao parto, ele foi visitar Márcia na maternidade, e acusou a falta de R$ 300 reais no pagamento. Ela afirma veementemente que não estava faltando nada, e foi obrigada a conseguir esse dinheiro a mais para dar ao obstetra. O quarto dela era dividido com outra gestante, acompanhada pelo seu marido e por visitantes que estavam no hospital. Ele a examinou na frente de todo mundo que estava no quarto, "abaixou minha roupa e o marido da outra paciente ficou me olhando. Me senti desamparada."
Ela ainda conta que o próprio médico afirmou que Clarisse, quando nasceu, já estava fazendo cocô dentro do útero, ou seja: se tivesse demorado um pouco mais, ela provavelmente teria morrido dentro de Márcia. A falta de monitoramento tornou impossível saber o que acontecia lá dentro.
"Você está em um momento de muito desamparo, você quer não digo carinho, mas atenção pelo menos. Em momento algum eu tive essa atenção. Me senti mais uma ali, tipo entra uma e sai outra".
É possível reverter esse quadro?
Para Maria Aparecida, médica, doutora em ciências da saúde e professora de práticas de saúde 2 na UNIRIO, a melhor forma de melhorar esse quadro é mudar a formação dos profissionais da saúde, de modo a estimular o pensamento crítico e ensinar o parto humanizado. Esse seria o cenário ideal.
No entanto, ela reconhece que há a mercantilização da medicina, onde os obstetras preferem fazer cesáreas por serem mais rápidas, garantindo um maior número de partos no mesmo dia, o que aumenta o ganho de forma substancial. O Brasil é o país com o maior índice de cesáreas do mundo, sendo um grande problema de saúde pública, já que o ideal é que esse procedimento só seja feito em casos de extrema necessidade. O efeito disso são bebês com problemas respiratórios e prematuros, que consequentemente aumentam a necessidade de leitos de CTI neonatal, além de maiores riscos à mulher, como acidentes anestésicos, hemorragias e infecções.
Maria ressalta que em suas aulas, procura deixar clara a diferença entre o parto vaginal e o parto humanizado, que por muitas vezes se confunde como uma coisa só. O parto vaginal leva em conta os aspectos biológicos da mulher, e quase sempre há algum grau de violência envolvido, seja por aceleração do nascimento com rompimento manual da bolsa e aplicação de hormônios para contração, seja com a episiotomia, manobra de Kristeller ou uma cesárea sem necessidade.
Já o parto humanizado é focado nos aspectos biopsicossociais da mulher, com participação dela na hora do parto sobre decisões como posição de parir, formas de aliviar a dor, sem aceleração e sem episiotomia, assim que o bebê está bem, já é entregue à mãe e pode mamar imediatamente.
Conselheiras do nascer
As doulas têm ganhado espaço permanente dentro das maternidades, mas para muitos ainda é um mistério sua função. Companheiras das mães durante toda a gestação até o momento de dar à luz, também ficam ao lado da mulher no puerpério, momento ainda mais delicado e comumente deixado de lado, já que as atenções estão todas voltadas para a nova vida que acabou de chegar.
Maria Julia tem 20 anos. Formada em fotografia, já estava acostumada com os quartos de hospital, onde teve o prazer de registrar partos humanizados, feitos com muito amor e respeito. Foi em uma dessas sessões de fotos que conheceu o trabalho de doulagem, e se aproximou desse universo. A princípio, o interesse era mais "acadêmico", pois aquela prática fazia parte da sua rotina. Acabou se apaixonando pelo mundo das doulas, e decidiu atuar também.
Mas afinal, o que é a doula? "A doula serve a mulher. Tudo o que ela quer e precisa, a doula está à disposição da gestante". Ela tem a função de trazer todas as informações que a mãe precisa para o parto, falando principalmente sobre a violência obstétrica, de modo que a mulher esteja informada sobre tudo o que ela precisa e não precisa passar na hora de dar à luz.
Na hora da criança nascer, o papel é de empoderamento, dar forças aquela mulher, fortalecer o seu emocional. Por conta da fragilidade do momento e da extrema dor, muitas mães acabam pedindo pela cesariana. "A doula tá ali pra lembrar ela de que ela é capaz, de que ela está na reta final e que daqui a pouco o bebê estará ali. Lembrar que a cesariana salva vidas, então se está tudo bem com a gestante e tudo bem com o bebê, vamos persistir para que tudo ocorra naturalmente".
É importante lembrar que as doulas não substituem os acompanhantes, nem têm poder de voz ou decisão dentro do hospital. Por isso elas levam as informações necessárias para a mãe e seu/sua companheiro/a, de modo que, caso a equipe médica tome decisões que desrespeitem o tempo, corpo e mente da mulher, eles saibam como agir e evitar que isso aconteça.